Raros são os artistas que têm a força necessária para fazer aquilo que amam e demonstrar o que sentem sem se preocupar com o que o público e a crítica pensarão deles – sobretudo mulheres – mas Kate Bush fez isso com grande êxito. A cantora iniciou sua carreira ainda muito jovem, aos 18 anos, ao gravar seu primeiro disco, “The Kick Inside”. No contexto em que vivia, Kate teve muito mais obstáculos ao tentar trilhar seu caminho na indústria da música do que a maioria daqueles que começavam junto a ela. A Inglaterra do final da década de 1970 estava tomada pela energia anárquica do punk de bandas como Sex Pistols e The Clash, o que não dava espaço para uma mocinha excêntrica de voz bizarramente aguda fazer sucesso algum.




Kate Bush, de família tradicional da classe média irlandesa, cresceu rodeada de influências que iam do experimentalismo do rock progressivo ao misticismo da religião católica. Elas foram incorporadas em seu trabalho e fizeram de seu primeiro single uma obra diferente de absolutamente tudo que havia sido feito até então. Wuthering Heights, inspirada na novela de mesmo nome da autora britânica Emily Brontë, mostraria ao mundo o que viria a ser Kate Bush. Com o lirismo literário da composição, envolta em misticismo e femininidade, ela provava sua intrepidez ao adentrar um território onde claramente não era bem vinda – e no entanto o foi.
Com a faixa, a cantora lançou dois videoclipes, nos quais performava a mesma coreografia em cenários que refletem os diferentes estados de Cathy, personagem da novela de Brontë. Apesar da força da música em si, foram as performances que provaram ao público a persona impenitente de Bush: que movia-se com o ritmo e dançava sob as palavras, incorporando tudo o que a personagem significava para ela e transformando sentimento em movimento – algo que ela continuaria fazendo por toda a sua carreira.
A cantora teve como maior influência seu primeiro professor de dança, Lindsay Kemp, que, além de grande coreógrafo e bailarino, seria também tutor de David Bowie. Em entrevista, Kemp conta que Kate era uma jovem tímida, que sempre ficava ao fundo da sala de aula, mas foi por ele incentivada a se expressar através do corpo, contar histórias sem falar uma palavra sequer.
Em agradecimento, a artista compôs Moving, a primeira faixa de seu primeiro álbum, dedicando-a a Kemp – que só foi descobrir que a aluna era também cantora no momento em que recebeu uma cópia do álbum recém-gravado. De modo sensível, Kate Bush faz o caminho inverso: descreve, a partir de palavras, os movimentos de suas performances corporais e de tudo aquilo que aprendeu com Kemp, seu mentor.

Tudo o que Kate Bush tinha de mais especial foi magnificado pelo seu extraordinário poder performativo. A cantora teve a audácia de se impor como mulher em um cenário especialmente dominado pelo patriarcado, e o fez sem deixar de lado a feminilidade, uma de suas características proeminentes. Ela era uma mulher bonita, de cabelos longos e corpo desejado, o que ainda dificultou seu caminho rumo a emancipação como artista: era muitas vezes colocada por produtores e diretores de vídeos em roupas apertadas, decotes desconfortáveis, além de ter sido considerada por muitos nada além de um rosto bonito que teve a sorte de ter algum talento musical.
Hoje, fica muito claro que Bush era muito mais que tudo isso, mas a crítica de seu primeiro álbum caiu duramente sobre a cantora, que em toda sua excentricidade não se enquadrou nos padrões de música que a Inglaterra esperava naquele momento. Jornalistas descreviam-na como alguém cujas músicas “cheiravam a cartas de tarot, cortinas da cozinha e travesseiros de lavanda”, e a cantora abraçava isso como sua marca de originalidade – Kate não julgava a feminilidade como algo frágil ou não merecedor de reconhecimento, então adotou o estilo macabro e a energia esotérica com orgulho.

Performances como as de Moving, Strange Phenomena, e Wuthering Heights ilustram exatamente a força desse movimento de Kate Bush, do reconhecimento do feminino ao invés de sua negação. Em vestidos leves e movimentos delicados, ela ilustrou o que significava para ela o feminino e deu voz ao gênero que fora até ali silenciado – muito similarmente ao que fez Emily Brontë ao escrever Morro dos Ventos Uivantes.
Bush defende que o erotismo e a sensualidade estão na essência de todas as artes. O assunto, no entanto, apesar de tratado com muita frequência por vozes masculinas, era pouquíssimo tratado por vozes femininas. A sexualidade feminina sem amarras é também um tema presente nas canções e performances da cantora, que usa a dança para expressar o corpo feminino em seus estados mais íntimos, de modo a equalizar a importância da sexualidade feminina à tão recorrentemente estapafúrdia sexualidade masculina.


O legado de Kate Bush no que diz respeito à libertação feminina no campo musical é clara, assim como sua influência artística e lírica sob cantoras como PJ Harvey, Mitski, Fiona Apple e Joanna Newsom. Ao entender o poder de seu corpo em movimento como forma de expressão, Kate foi capaz de projetar emoções humanas e imagens do mundo natural e metafísico de forma não apenas extraordinária mas sobretudo subversiva. Não se importando com o que a crítica predominantemente masculina tinha a dizer ao seu respeito, a cantora colocou-se como dona de sua carreira e de seu próprio corpo e movimento.
É tamanho o valor desse movimento, que inspira, aos dias de hoje, movimentos como o cômico “The Most Wuthering Heights Day Ever”, em que centenas de pessoas no mundo todo juntam-se para interpretar a icônica dança coreografada por Kate nos vídeos da música. Esse tributo descontraído serve apenas como forma de ilustrar a influência e importância do movimento na carreira da cantora e de tantos que viriam depois a encontrar “todo esse novo mundo de expressão e comunicação” subjugado pela crítica.

