Tenho poucas lembranças do comício do Lula na Candelária, em 1989, em que fui com meu pai e meu irmão, Thomaz. Eu tinha 10 anos e o Thomaz 7, por aí. Lembro de bandeiras vermelhas, pessoas muito animadas, felizes mesmo, e da voz do Lula vindo do palanque. Para mim era meio que uma festa, mas ao mesmo tempo era mais que isso. É meio brega falar assim, mas tinha uma sensação de esperança no ar, sabe? Aquele eletricidade que as vezes acontece na vida, em um momento qualquer, em que tudo parece ganhar outra forma e o mundo parece ser todo conectado. Enfim. Lembro de muita coisa dessa campanha. Dos jingles, da TV Povo, até do trenzinho de computação gráfica do Collor. Eu assistia todo dia o programa eleitoral, como uma novela. Na noite da apuração, ficamos, eu, meu pai, minha mãe e meu irmão, na casa dos pais da minha namorada na época, a Julia. A gente tinha dez anos então o namoro consistia em andar de mãos dadas e dizer que namorávamos. Ela, que era uma exímia lutadora de capoeira, também brigava com os meninos que me provocassem, o que eu adorava. Nossos pais, que eram amigos antes da gente existir, ficaram vendo o noticiário até tarde – a gente junto – e acabamos dormindo por lá. Eu e Julia ficamos conversando pela madrugada e dormi no quarto dela, empolgado e ansioso. O dia seguinte, no entanto, foi de derrota. Mesmo com meus dez anos, foi um soco no estômago.
A festa tinha acabado e a gente tinha perdido aquela esperança, aquela energia. E para aquele cara que gritava, usava verde amarelo e, para mim, era um nada. Já naquela época eu entendia um pouco o que ele era, na verdade. Uma enganação, uma mentira, por um lado, e um muro, por outro. Uma barreira que era e seria erguida sempre que as pessoas não muito diferentes da minha família e de mim, que tinham tudo que a gente tinha – e por vezes muito mais -, não queriam deixar que as outras, que não tinham nada daquilo, existissem. Ao menos não no mesmo mundo que a gente. Era uma sensação, mais do que um pensamento, mas também já era um pensamento. Uma visão de mundo. Lembro que fiquei triste, muito triste, por alguns dias, até onde uma criança de dez anos, feliz, poderia ficar. Como quando o Vasco perdeu para o Fluminense nas quartas de final do campeonato brasileiro, também em 1989.
Me assusta e, mais do que tudo, me incomoda profundamente que tentem tirar a emoção, o povo, as ruas, da política. Hoje, trazer o povo para um partido ou governo virou apenas um selo: populismo. E, por isso, mesmo quando tantos apoiam o PT e Lula, hoje – e fico imensamente feliz, grato mesmo, que apoiem – o fazem como se tapassem o nariz. Veja bem, não é uma recriminação. Muitos, inclusive inúmeros tucanos, estão agora mostrando quem são. Não porque tenham que apoiar Lula e ele seja, autoritariamente, o único caminho, mas pela razão contrária. Por deixarem de lado décadas de embates e acusações em prol do que veem, corretos ou não – eu tenho a certeza de que estão corretos, mas é só a minha certeza e não um julgamento histórico porque não tenho as ferramentas para isso – como a luta por algo maior. Mais importante. Por um pedaço daquela esperança que eu senti em 1989 e que não vinha só do Lula. Vinha de sentir-se parte de uma mesma coisa. De um mesmo mundo. De um mesmo Brasil.
O que quero dizer é que, discordando-se ou não, Lula e o PT não são um porém. Não são um acidente da história brasileira. Não são a solução menos pior. É muito fácil achar que foi uma coincidência caber justamente a Lula enfrentar o bolsonarismo transformado em força de conquista e destruição. É muito fácil achar que Lula e o PT foram alçados a esse embate pelas circunstancias. Pior ainda, apontar, a meu ver de maneira absurda em termos históricos e políticos, que foram eles os culpados por Bolsonaro existir. Bem, se eles – com seu milhares de erros, muitos deles de enorme gravidade – foram culpados, é a luta do povo brasileiro, em suas muitas e tantas frentes, que precisa ser responsabilizada. É óbvio que a crise econômica durante o governo Dilma, como sempre ocorre em crises econômicas, envenenou o ambiente e gerou um campo mais fértil para proliferar essa reação. Mas basta olharmos o discurso e as bandeiras do bolsonarismo para entendermos que não vem daí o discurso nem a raiva que ele alimenta. Não vem da crise econômica o racismo, a missoginia, a visão de um governo elitista, preconceituoso, que vê o povo como uma massa inferior – algo que Bolsonaro já deixou claro em inúmeras declarações. Isso tudo vem do Brasil, o mesmo que me derrotou – e ao Lula – em 1989 -, só que, agora, em sua versão mais aberta e despudorada.
Pois bem, tantos apostos – não sei viver sem eles – para dizer que o PT não é o partido do mensalão nem do petróleo. Não é uma quadrilha. Não é a antítese nem o criador do bolsonarismo. O PT é o partido dos trabalhadores. Algo que, com todos os seus méritos, o PSDB não conseguiu fazer e, muito menos, Ciro Gomes. Brilhante que é, Ciro ataca o PT como alguém que quer ser ungido diretamente pelo povo, sem mediações, sem história, sem participação. Formulador ímpar de uma política de governo e de um ideal de estado desenvolvimentistas, Ciro nunca se deu ao trabalho, ou foi capaz, de construir esse ideal de baixo para cima. Isso não desmerece sua trajetória, sua capacidade nem o bem que poderia – e pode – fazer ao país. Mas torna vazias as críticas que faz ao PT.
O PT, não se pode esquecer, não nasce por geração espontânea, muito menos chega assim ao poder. Ele é uma construção de décadas. O PT vem da luta de base do movimento sanitarista que, ao fim da Ditadura e na redemocratização, levou à criação dos SUS. O PT vem da reconstrução e batalha do movimento sindical que erodiu as bases do regime militar. Algo que não foi feito apenas com uma greve e um discurso de Lula, mas com anos de conversas no chão de fábrica, organização e desenvolvimento de formas de solidariedade e representação, em um país no qual o trabalhador sempre ficou à mingua, à parte das decisões políticas. O PT nasce da luta dos trabalhadores para terem uma representação nacional e unificada. Nasce da luta dos povos da Amazônia contra a obliteração e o assassinato, primeiro com Chico Mendes depois com Marina Silva e tantos outros. Nasce dos movimentos comunitários urbanos e periféricos nas grandes cidades, organizados em conselhos e núcleos de ação. Nasce das Universidades e do movimento estudantil, sufocado pela Ditadura. Nasce de militantes expulsos do país, uns que participaram da luta armada, outros não, que dedicaram a vida a um ideal, concorde-se com ele ou não. Da luta dos bóias frias, dos trabalhadores do campo e pequenos agricultores, expostos a todos tipo de violência, não raro a condições desumanas e similares à escravidão. Tratados como se não fossem gente. Das organizações de base da Igreja Católica que, como faz hoje o padre Juio Lancellotti, buscavam ser uma força de mobilização, empatia, solidariedade e apoio com a população desvalida, invisível para a sociedade brasileira.
É por isso, e não por uma coincidência do destino, que todas as tentativas de enganar e comprar o povo que o atual presidente empreende não funcionam. É por isso que, entre aqueles que recebem o Auxílio Brasil, a vitória de Lula é esmagadora. Porque é nele que depositam a confiança de que o projeto continuará como política pública e não tentativa de fraude eleitoral de alguém que nunca dedicou um segundo de preocupação com os trabalhadores e com qualquer pessoas oprimida.
Ache-se o que quiser de Lula e do PT, aponte-se todos os erros do ex presidente e do partido – e existem muitos -, mas o partido e o que ele representa são forças vivas, em eterna construção, disputa e mudança. Um partido popular, que nasce das pessoas, da base, é um partido plural, com muitas vozes e diferenças. É tudo menos o monolito que tentam descrever.
Por isso quando Lula disse que era uma ideia não estava se proclamando um Deus muito menos um autocrata. Porque a ideia que o levou a estar onde está, que o levou a ser presidente duas vezes, a ser preso e a, agora, ser o representante da Democracia brasileira contra a destruição, existiu antes dele e existirá muito depois que ele não estiver mais aqui para representá-la.